Crônicas do Óbito [7]: Saúde de ferro

Que todos nós estamos suscetíveis aos desenganos da vida, não há dúvidas. Não temos como saber o imponderável. Em qualquer circunstância, poderemos necessitar de um médico, um hospital, um exame específico. O pai, por exemplo, não foi exatamente preocupado com isso durante muitos anos.
“Mas os guris precisam de plano de saúde”, dizia a mãe.
“Eles têm saúde de ferro”, respondia.
Saúde de ferro. Quantas vezes essa expressão foi ironizada pela gente. No princípio da separação de meus pais, principalmente, um argumento falido na relação entre ambos era esse. De fato, para o Matheus ou eu adoecermos, não era exatamente fácil, mas em determinados momentos apareciam sintomas: espirros, dor de cabeça, enjoos, febre leve. Coisas que se resolviam com soluções simples e rápidas, já orientadas pelo Dr Miúra, nosso médico desde pequenos.
“Olha aí! Pra que pagar se já tá tudo bem? Dinheiro posto fora”, resmungava.
Com o passar dos anos, fosse pela solidão inicial, pela bebida, pelos descuidos ou pela idade, o pai passou a necessitar de alguns acompanhamentos. A dita “saúde de ferro” dele já dava sinais de ferrugem. No entanto, o plano da Golden Cross que ele pagava já não cabia no ordenado do INSS. Apostou no SUS.
“Nunca fui tão bem atendido. Voltei lá do posto não faz uma hora, sendo que fiquei só uns minutos esperando atendimento. Aquele médico já sabia tudo que eu precisava”, disse uma vez, num dos almoços do último apartamento que ele morou no Centro.
E o pai se cuidava bem. Era regular nos exames, nas tentativas de controlar a diabete (pré-diabete, segundo minha madrasta), nos remédios que ele buscava na farmácia municipal. Ia tudo muito bem, até a chegada da COVID19.
Anos atrás, por já ter o plano de um atendimento de emergência da cidade, resolvi incluí-lo, para qualquer eventualidade.
“Ó, pai, pega o número da Ecco Salva aí”, e ditava pra ele.
“Uhum, uhum” era o que se ouvia do outro lado.
“Se tu precisares, liga, pai. Não tem por que passar dificuldade aí.”
“Não vou precisar.”
“Espero que não. Mas, se precisar, liga.”
A Alcina disse que o pai nunca havia comentado do plano. Ele não estava se sentindo bem naquela fatídica sexta-feira e, mesmo sem conseguir falar, apontou para a carteira. Ela foi correndo pegá-la e lá estava o número da necessidade.
Não sei como procedeu todo o atendimento, o tempo de demora, a remoção, a chegada ao hospital. Só sei que, naquela madrugada de sábado, chegamos o Matheus e eu ao hospital e ela disse, sem poupar palavras:
“Aquele plano que tu fez salvou teu pai.”
Pelas circunstâncias, ela achou que o pai teria partido em casa, sem maior auxílio. No entanto, com a chegada dos paramédicos, houve a reabilitação e o pai foi vivo para o Conceição, local onde várias vezes foi realizar exames. De fato, a ajuda, somada às intervenções feitas pelo hospital, postergaram a vida do pai por mais duas semanas, antes de seu último suspiro.
A saúde, que nunca é de ferro, necessitaria sempre de alguns cuidados. Mesmo à distância, vendo que há anos ele já não tinha os mesmos reflexos e as mesmas forças, me preocupei em dar algum alento àquela saúde que desfilava frágil, muito mais próxima de um papel do que de um ferro. A lição que fica – caso ainda precisemos dela – é a de que todo nosso caminho na vida se faz com cuidado à saúde, para que pareça de ferro, mas que tenha sido moldada pelo compromisso consigo mesmo.

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