Crônicas do Óbito [6]: Os fios do bigode

No final dos anos 80, talvez pela imagem do Tom Selleck na série “Magnum”, era muito comum encontrar em diversos homens um portentoso bigode, de ponta a ponta do buço, volumoso e dono de uma ostentação especial. Era quase um caso de hombridade.

Quem conheceu o pai no final dos anos 70 até o início dos 90 viu que ele usava um. Em diversas fotos minhas da infância, nos vários álbuns que minha mãe organizava – até o fim das máquinas com filme, pasmem -, ele aparece com aquele bigode. Fosse rindo entre diversos homens e inúmeras garrafas de cerveja, fosse em momentos de família, fosse em closes sem muito desejo de aparecer. O bigode era uma marca registrada.

Quando éramos menores, o pai buscava o Matheus e eu quando retornava do escritório. Ele trabalhava na Siqueira Campos, pertinho do Mercado Público, num escritório de comércio de couros variados, para o Brasil e para o exterior. Saía de lá em torno das 17h, passava reto pelo apartamento que morávamos e seguia até a Duque de Caxias, na esquina com a Marechal Floriano, chegando até o Sévigné. Eu, pequeno, sempre esperava na janela que dava para a rua, no saguão do colégio. Olhava pra fora, entre brincadeiras e risadas com alguns colegas, mas quando via aquele homem grande e de bigode chegando, sabia que precisava pegar minha mochila.

Eu estava na primeira série. O pai já alertava a mãe:

“Acho que vou tirar o bigode.”

“Os guris não vão te reconhecer”, ela disse.

Não dei bola. Era impossível. No meu imaginário infantil, o pai tirar o bigode seria tirar uma parte dele fora. Bem capaz que eu veria o pai sem bigode!

Pois foi numa certa semana, num outono – se não me engano – de 1990, que o desespero veio.

Eu já estava no saguão da escola, esperando pelo pai. Eram 17h35 quando largamos as mochilas no saguão e começamos a brincar. Correria de um lado para o outro, algumas gritarias, a tia Jane (o que seria a monitora da época) dizendo para falarmos baixo. Mas, vocês sabem, né: crianças. A gente infernizava a pobre da mulher. E, nisso, o tempo foi passando. 17h40. 17h45. Quando ficamos só um colega e eu, fiquei preocupado. Eu nunca ficava depois do Raul. Ele sempre era o último, pois esperavam encher a Kombi que levava todo mundo para casa. Sentei-me num dos bancos do saguão, de frente pra rua. 17h50. Nada de me buscarem.

Comecei com aqueles soluços, de quem vai começar a chorar. A tia Jane, muito atenta, já veio falar comigo.

“O que foi, menino?”

E eu, como sempre, não falava. Quieto.

“Teu pai deve estar chegando”, ela dizia.

Mas eu olhava pela janela e não via o pai de jeito nenhum. Era um desespero só. Eu ficaria trancado no colégio para sempre! Ou, ao menos, era o que minha cabeça me dizia. Com seis anos.

“Olha ele lá”, disse a Jane.

Olhei de relance e respondi:

“Não é ele.”

“Como não? Olha bem!”

E lá estava ele. Tinha saído do escritório, passado no Melinho – nosso cabeleireiro na infância, que estava cheio, segundo ele – cortado o cabelo e… tirado o bigode. Eu nunca iria reconhecê-lo mesmo! Saí correndo, mal educadamente sem me despedir da Jane, e fui ao encontro dele.

O pai deixou de parecer o Tom Selleck, mas ganhou uma identidade mais própria. Nunca mais ele deixou o bigode crescer e assumiu o rosto totalmente nu, exposto a todos. Seria essa uma forma de se mostrar um pouco mais? Não sei. De fato, nunca mais houve problema de reconhecimento. Inclusive, a barba que ostento hoje também me faz ver que há algumas diferenças entre o meu eu de barba e o sem barba.

Mas do rosto limpo do pai não deu mais pra esquecer.

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