Era tarde da noite, quando ele chegou.
“Tá tarde, pai.”
“Vai deitar. Tu tem aula amanhã.”
Ele ligou a luz da sala, largou o pacote com um xis do bar ao lado do nosso prédio e tirou o casaco. Fazia frio e só lembro de ter voltado para baixo das cobertas, após a mãe também chamar para isso.
O pai havia voltado do Beira-Rio. Reclamou do time, de passar frio no estádio. Não escutei isso, mas certamente ele deixou de frequentar o estádio depois, pois não saíra mais à noite ou no domingo de tarde. No entanto, o rádio estava sempre ligado e as notícias sempre chegavam sobre o Colorado.
“Pra que esse Sandro Becker”, ele se indignava.
“Do Inter, pai?”
“É. Perna de pau.”
E, a partir dali, eu comecei a acompanhar o time. Não era uma frequência constante, mas era um início. Vimos, pela TVE, a final do Gauchão de 1991, com o Alex Rossi fazendo o gol do título colorado. Foi uma vibração grande, pois fazia uns anos que o Inter não levantava o caneco. Ouvimos juntos os jogos da Copa do Brasil de 1992, quando o Inter foi campeão sobre o Fluminense.
Assim nasceu meu coloradismo. Associado ao pai e aos fatos que inicialmente deram alguma importância para isso. Em 1991 também, iniciei nas escolinhas de futebol do Sévigné e fiquei até o ano final para nossa idade. Nunca adiantou muita coisa pelo meu futebol, mas o pai sempre estava lá com o César, pai do Diego, ou com o Fred, pai do Fábio. Os pais do Vini e do Gelatti também eram presenças constantes entre os papos de futebol e de trabalho.
Mas eu nunca tinha ido ao Beira-Rio. A mãe implicava, dizia que não era lugar pra gente (não pelo futebol em si, mas pelo confronto de torcidas, segundo ela), que seria perda de tempo. Só que eu sempre quis conhecer.
Em 1998, uma novidade veio com força na gestão do finado presidente Amoretti: ser sócio e não pagar entrada nos jogos.
“Que tu achas, pai?”
“Deve ser caro.”
“Não parece tanto. E eu nunca fui pro estádio. A gente poderia ir.”
“Não tenho muita vontade de ir pro Beira-Rio de novo.”
Mentira. Tinha sim. Só não estava disposto a pagar a mensalidade.
O Manera e eu fomos ver quanto custava a associação e decidimos insistir com nossos responsáveis. Passei o valor pro pai e ele, muito a contragosto, acabou aceitando. Tornamo-nos sócios.
Naquele ano, fomos a todos os jogos que o Beira-Rio proporcionava, até a fatídica derrota do Inter para o Juventude, na semi-final da Copa do Brasil daquele ano. Foi um 4 a 0 portentoso que decepcionou tanto meu pai que ele decidiu não pagar mais as mensalidades. Acho que ele esperava por novamente ver um título grande dentro da “nossa casa” e ficou inteiramente decepcionado.
Levou alguns anos para eu pisar no Beira-Rio novamente. Precisei sair do colégio, iniciar a graduação, conseguir um trabalho e ter novamente um plano de sócios favorável ao meu reingresso. E lá estávamos o Manera e eu novamente, ostentando nossa carteirinha vermelha de sócio do Inter, no glorioso ano de 2006.
“Pai, me associei no Inter de novo.”
“Vai botar dinheiro fora.”
“Acho que não. Tem Libertadores esse ano e os jogos sairiam caros se fosse sem a carteirinha.”
“Só vou ver pela tevê.”
Ainda morando na garagem transformada em JK, ele deitava na cama, se cobria todo e via na nossa antiga televisão de 14 polegadas os jogos do Inter pela Globo.
Poucas vezes depois vimos algum jogo do nosso time juntos. O pai já havia perdido um pouco do prazer pelo futebol, mas via outros esportes com certo afinco – tênis, inclusive, era um dos favoritos. Até que um dia veio um e-mail do clube.
Era a proposta de que os sócios se eternizassem no Gigante. A ideia era a aquisição de placas, nas quais estariam nossos nomes, como “colaboradores” da reforma do Beira-Rio para a Copa de 2014. Era um valor alto até, mas não pensei duas vezes: comprei duas placas. Numa, o meu nome; noutra, quem me deu o sentido de fazer aquilo.
Tentei inúmeras vezes levar o pai até lá para fazer a surpresa. Sempre tinha um “hoje tá muito frio”, “não quero ter de usar banheiro lá”, “não posso mais me enfiar no meio da multidão”. Tentativas e mais tentativas. Ele não cedeu.
Em todo o caso, o Beira-Rio recebeu meu pai. Ele, que desde sua vinda a Porto Alegre, ainda guri, criou uma afeição pelo clube, está lá marcado como uma das pessoas que ajudou na sua evolução. Pode não ter dado um centavo sequer para a colocação da placa, mas depositou em mim o sentimento de que, por meio do futebol, a gente também pode cativar as nossas relações e as nossas origens, como forma de encontrar quem somos e de onde viemos.