Crônicas do Óbito [4]: Tempos difíceis

Numa certa ligação, altas horas da noite.

“Eu sinto falta de vocês.”

Ele não costumava dizer isso. A figura sempre foi de fortaleza e segurança. Ao se separarem, ele nem mediu muito esforço e saiu de nossa morada, rumo à pequena casa (a garagem transformada em JK), naquele terreno nos fins de Ipanema. Pegou suas coisas e saiu, sem despedidas maiores, sem nem um abraço ou um “sentirei saudades”.

A nossa família, principalmente no nosso núcleo de convívio, não era dada aos abraços e beijos. Não sei se por conta da relação constantemente instável de meus pais, se pelos afofamentos constrangedores e desnecessários – na minha visão de criança – que a mãe proporcionava, mas essas coisas cessaram. Ouvi-lo dizer aquilo, ao telefone, foi muito estranho.

“Eu sinto falta de vocês.”

Uma tormenta de significados se assomava, como numa pancada forte de chuvas torrenciais. Não era aquele mesmo cara que saiu de casa sem despedidas? Ou aquele que mal conversava conosco quando jantávamos? Ou será que era aquele que me conduzia num Fusca de plástico com menos de um ano de idade? Que me dava banho e saía rindo nas fotos, como se aquilo tudo fosse alegria?

Quem era ele, afinal?

“Eu sinto falta de vocês.”

“A gente também sente, pai.”

“Vocês querem vir aqui?”

“Vamos combinar.”

Eu deveria ter uns 18 anos. Já era maior de idade, mas minha cabeça não se comportava bem assim. Faltava maturidade para lidar com muitas situações, bem como também era proporcional a falta de tato que o pai teve conosco durante muitos anos. No entanto, ter dito aquelas palavras, naquele contexto, naquela distância, trouxe um pouco de amenidade para a relação.

Lembro de ter ido lá numa tarde posterior à ligação. Não ao certo em que dia, em que mês, mas lembro que o pai só abria a porta da garagem pra gente, contava e queria saber das trivialidades, comíamos e íamos embora. O ônibus passava na frente do terreno, mas ele dizia para pegarmos a condução na Juca Batista, pois “tinha ar condicionado e não demorava tanto”, por conta do trajeto.

Só lembro que naquela saída, eu me virei pra trás e ele passava as mãos no rosto, voltando em companhia de alguns dos nossos cães, para dentro daquela pequena casa. Aquela pequena casa, que habitou durante tanto tempo um coração solitário e que recobrou os sentimentos que tinha pelos filhos.

Quando recebi a ligação do Hospital Conceição, naquela fatídica segunda-feira, já no carro e rumando para meu último momento perto dele, atravessei a Juca Batista, passei pela esquina da estrada – onde ele e eu moramos em tempos diferentes – e lembrei daquelas mãos passeando pelo rosto e se fechando. Um adeus não dito em meio a tantas coisas por ainda dizer.

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