Crônicas do Óbito [1]: Traduções

“Pai…”

“Hm?” – olhando para a tevê.

“Como é videocassete em inglês?”

“Assim mesmo: videocassete.”

“E televisão?”

“Television” – sem deixar de vê-la.

Olhos vidrados na estante na sala: havia muito o que perguntar sobre as palavras em outra língua. Eu não entendia nada sobre traduzir um termo de uma língua para outra. E não era tudo igual? A gente não falava igual a todo mundo?

Na tevê, seguia o Jornal Nacional, na voz do Cid Moreira e do Sérgio Chapelin. Notícias de um mundo tão diferente e tão menos covidiano.

Com a curiosidade ainda aguçada, olho para o topo da estante. Além de uma samambaia acariciando um canto do móvel, lá do alto, dezenas de livros que não me diziam nada literário, mas que me fascinavam pelos títulos e pelos volumes. Afinal, eu ainda pegava livros na biblioteca do Sévigné que eram um pingo perto daquela imensidão de páginas escurecidas pela tinta das letras e amareladas pelo tempo.

“E como é livro?”

“Hm?”

“Livro, pai.”

“Book.”

“Book…”

Levantei do sofá e fui até a beira da estante. “Book”, pensava eu, repetidas vezes. “Book”.

O máximo que eu alcançava, porém, era a própria televisão. Poderia mexer nos canais, mas o pai ficaria brabo. Eu queria alcançar aqueles livros e pegar naqueles calhamaços gigantes. O que será que queria dizer “Terras do sem fim”? Ou ainda “A ferro e fogo”? Por que tinha gente com o sobrenome Llosa, com dois eles, se nenhum dos meus colegas tinha nome parecido? Eu precisava pegar pra ver.

“Desce daí”, ele me disse.

Ainda olhei uma vez mais pra cima, pra ver se eu conseguiria escalar aquela estante, mas meu pai me dissuadiu. Não precisou muito, já que olhou bem brabo para meu princípio de rafting indoor.

“Quando tu crescer, tu vai saber o que são.”

Fiquei quieto. Voltamos a olhar a tevê – ele sem se mexer do sofá, eu me reposicionando para olhar aqueles dois homens de idade noticiando algumas coisas. Até que uma imagem do Ayrton Senna me tirou o foco dos livros.

Mas o pai estava certo. Aquele não era o momento de eu alcançar aqueles livros. Poderia tê-los visto, não encontrado nenhuma ilustração, e desistido da ideia de que valeria a pena saber o que eram aqueles montes de papel prensado. Poderia ter rasgado uma capa, sujado uma página, tomado um cascudo e nunca mais me interessado em livro. No entanto, tudo foi um pouco diferente.

Acabei me encontrando com os livros logo adiante, já num tempo em que não precisava mais escalar a estante. Numa esfera de leituras e estudos, num universo de livros que elencaram minha imaginação e meus armários. Isso tudo para, anos depois, eu também estar na última estante que ele teve.

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