SPOILER ALERT! Primeiro capítulo de “Mosaico de sangue”

[Para degustação pública: segue abaixo o primeiro capítulo do novo livro. Em breve serão anunciadas a data de lançamento e as formas de venda do material. Aguarde! 🙂 ]

27 de fevereiro de 2022 

Pátio central do Colégio Sagrado Coração 

O primeiro dia de aula e o resto de nossas vidas. É uma frase nominal talvez sem muito impacto para muitos. Ir ao colégio, encontrar amigos (novos), caminhar pelos espaços que acompanham seus crescimentos muitas vezes desde tenra idade, desde balbuciadas iniciais aos termos mais concretos. 

Eles chegam juntos, tendo um passado na casa do outro, somando-se para adentrar uma última vez como estudantes daquele local. Formavam o que há anos se famigerava como Terceirão. Eduardo à frente, seguido de Jonas e Maurício, lado a lado, e Miguel ao final. As portas abertas permitiam-nos ingressar pelo prédio em que ficava a secretaria, a sala dos professores, a biblioteca e demais setores relevantes no primeiro piso; no segundo, as salas de aula do Ensino Médio. Passaram o grande saguão, em que figuravam imagens de Jesus, de sua mãe, Maria, além do padre que iniciou a congregação Devotos Marianos e Seguidores, Ernesto Paulo Scholze; na parede direita do acesso, imagens dos diretores dos últimos 50 anos de colégio e, abaixo, fotos dos dez Terceirões formados pelo Sagrado Coração. À esquerda, a mesa da recepção, acolhida por Guadalupe, tão ou mais antiga que a própria instituição. 

“Bom dia, meninos! Bem-vindos novamente”, disse ela. 

“Bom dia, tia Guada”, responderam em coro, aos risos. 

O saguão, porém, finalizava no pátio central: um espaço suficiente para duas mil pessoas circularem tranquilamente – mesmo que, naquele momento, a instituição não tivesse nem metade. A pandemia arrastou diversos empregos e muitos pais – autônomos, empregados da iniciativa privada – necessitaram poupar seu suado dinheiro para que não pendessem a perdas ainda maiores. A educação, no caso, foi atingida. 

“Fala, meu! Curtiu Santa, então?” 

“Bah, demais. Altas gatas!” 

“E o nosso time? Tá complicado sem centroavante.” 

“A gente se vira.” 

“Ano de estudos, hein? Aquele ENEMzão no final do ano!” 

“Nem me fala, guria. Nem me fala.” 

Aos borbotões falavam, sem muitas papas, sem muitas precauções. Os professores já começavam a aparecer e adentrar a sala dos docentes – o que já imprimia algumas ovações. Eduardo já fazia sinais para a professora de Matemática, sua desafeta desde a quase reprovação no primeiro ano. Jonas riu, mas fez com a mão para que ele parasse. 

“É recém o primeiro dia, cara. Não, né?” 

“Aquela velha me irrita só de olhar na cara dela.” 

Miguel ri daquela fala, mas também passou pelo mesmo problema. Como já havia sido reprovado anos atrás, passou pelo pão que o diabo amassou com os pais e fez o ano posterior de maneira espetacular, muito diferente do que vivenciara. Não nutriu ódio ou qualquer dissabor pelos professores – ele tinha noção do próprio histórico, coisa que Eduardo não notava. 

Aos poucos, mais e mais estudantes ingressavam no Sagrado Coração. Desde os pequenos, trazidos por seus responsáveis, com aquele beijo e abraço de despedida como que se não fossem nunca mais se ver; os novos estudantes do Ensino Médio, observados de maneira muito sagaz por Jonas, que se gabava por conhecer cada um (que, no caso, se restringia a saber qual era a série e a turma, com quem andavam ou estavam enrolados); os encontros e brincadeiras dos pré-adolescentes do Fundamental, com a maior cara de quem estava ali para se exibir, não apenas para conversar. 

“Ah, mas se não é o mano Alisson aí, gurizada!” 

Alisson era um cara muito querido pelos colegas, mas nem tanto pelos professores. Altamente falastrão e sedutor, aparentemente sua maior relevância no espaço escolar se dava por ser alguém com muita facilidade para congregar. Se suas notas não eram grande coisa, se sua lábia aguçada não enfeitiçava os professores, ao menos mantinha uma relação muito doce com todos – o que lhe proporcionava alguns conflitos amorosos, psicológicos e até – pasmem – sociais. 

“Aí, gurizada, qual é?” 

“E aí, meu, foi pra onde nesse verão? Teu Insta tava meio parado”, jogou Maurício. 

“Cara, fiquei um tempo na casa dos velhos em Cidra, mas logo voltei. Muito palha lá.” 

“Palha? Não ficou lá pela Concha Acústica?” 

“Ah, umas duas ou três noites, mas bah, muita chinelagem.” 

“Mas tu é chinelo também, cara.” 

E riam-se os quatro, sob o olhar debochado de Alisson. 

“Tá, bando de bonecas, vão nessa. Depois tão tudo fudido com as mina aí e não sabem por quê.” 

Os quatro riram, apesar de mais comedidos. Eles realmente tinham dificuldades com as gurias do colégio, pois sempre foram vistos longe daqueles colegas mais populares e, por sua vez, mal eram lembrados por quem gostariam que os vissem. Não eram exatamente nerds, mas não tinham o papo como grande característica; não eram exatamente estudiosos, mas não estavam lá só para zoar. Já haviam passado por poucas e boas. 

Alisson caminha por entre os demais, cumprimentando aqueles que o conheciam, apresentando-se a pequenos desconhecidos que mal entendiam o motivo de ele circular daquela forma. Era assim mesmo: desde sua entrada no Sagrado Coração, conversava até com as árvores que ficavam ao lado do ginásio, nos fundos do terreno. 

Perto das 7h30min, ouviu-se uma movimentação próxima à sala dos professores. Colocaram caixa de som, microfone; os professores começaram a se posicionar encostados na parede ao lado da porta. A diretora Sônia se posiciona à frente, com um largo sorriso. Pega o microfone, testa-o. Em seguida, dá as boas-vindas aos estudantes. 

“Queridos estudantes do Colégio Sagrado Coração, sejam todos muito bem-vindos a esta casa que tanto se orgulha em acolhê-los!” 

Alisson estava a três fileiras da frente da diretora. Quase riu do pronunciamento inicial: “todo ano é igual”. Olhou para os lados, a fim de ver quem dos mais próximos estava por lá, mas os quatro guris ficaram bem para trás. Havia alguns dos guris do primeiro ano, com quem jogava futebol nas terças, na mesma linha em que estava; do outro lado, a Carol e a Ju quase na parte coberta oposta à sua linha.  

“Só toco do meu lado”, pensou alto. 

Tomou uma cotovelada leve de alguém à sua direita. 

“Queremos que saibam sempre, queridos, que em todo ano letivo estamos aqui para ajudá-los, não importa com quais dificuldades ou anseios. Somos uma equipe completa para sermos completos para vocês…” 

“Que é isso, meu?” 

A pessoa ao lado mede cerca de um metro e meio, pouco mais. Está com o capuz do moletom preto sobre a cabeça. Alisson a observa e pensa numa forma de puxar o adorno. 

“Aqui está o nosso corpo docente, sempre dedicado ao intenso trabalho de educar. Todos são especialistas em suas áreas, mas aptos às mais diversas conversas com vocês…” 

“Que anão chato, meu…”, disse de propósito. 

Recebeu outra cotovelada. 

No desvio, deixou o braço estendido. Puxou o capuz. 

“Quando precisarem, não se omitam. Não se calem! A educação se faz numa via dupla, em que as partes colaboram entre si para que os resultados venham junto ao processo que se desenha ao longo do ano…” 

Olharam-se. Iluminaram-se. Conheciam-se? Não parecia. Alisson olha para frente de novo, mas logo se vira para aquela pessoa novamente. Encontra o olhar dela de novo se perdendo no seu. 

“Assim que queremos que lembrem do nosso colégio: para além da educação, a acolhida; para além dos estudos, o amor ao próximo. Muito obrigada!” 

“Muito amor ao próximo”, disse ele. 

“Quê?”, mostrou-se desentendida. 

“O colégio tem muito disso”, desviou-se. 

“Ah, tá”, finalizou ela. 

A menina colocou novamente o capuz sobre a cabeça. A coordenadora e as professoras do primeiro ao quinto ano conduziam as filas de estudantes pequenos ao auditório. Ela virou-se à frente mais uma vez, pois a coordenadora pedagógica Cláudia tomou a palavra para dar as orientações iniciais para o ano letivo. Alisson gostava de Cláudia. 

“Essa mulher é tri gente fina”, disse. 

“Ela é coordenadora?” 

“É.” 

“Então não deve ser.” 

Alisson a olhou espantado, virando-se à frente com um sorriso irônico. 

“Muito bem, pessoal, vamos às salas de aula de vocês. No mural do bloco A, por onde chegaram até aqui, há as listas de salas do Ensino Médio, que fica nesse prédio; gurizadinha do sexto ao nono ano: no bloco B, logo atrás de vocês, no mural ao lado das escadas, há as listas com os nomes das turmas e de vocês, para que então subam às suas salas.” 

“Tu vem de onde?” 

“Como tu sabe que eu sou nova aqui?” 

“Sei de tudo desse colégio”, ironizou. 

“Ah, sei”, virando-se e pegando a mochila que deixou entre as pernas. 

“Eu estudo aqui desde o primeiro ano, lá no prédio dos pequenos. Tô há muito tempo nesse lugar.” 

“Velho, então.” 

“Não, velho não”, disse retorcendo o corpo, como se pavoneando a menina. “Tenho uma certa experiência com o lugar.” 

“Tá bom”, riu-se. 

“Ei, sério”, chamou ele, colocando a mão sobre o ombro dela. “De onde tu vem?” 

“Marista”, respondeu, sem maiores especificidades. 

“Conheço gente de lá.” 

“Mas tu sabe a qual eu me refiro?” 

“Não, mas imagino que seja o daqui de perto.” 

“Nossa, muita dedução. Deixa eu ir lá ver minha sala.” 

“Eita, tá bom”, andou de costas, com as mãos para cima. “A gente vai se cruzar muito por aí.” 

“Não sei.” 

“Ué? Não vai estudar aqui?” 

“Sim, mas gosto de ficar na minha.” 

“Se tu diz…” 

“Tchau.” 

E se retirou, sem mais nem menos. Carregava uma mochila leve, parecendo não haver nada embutido. Alisson a observa ir ao prédio do Fundamental, mas estranhou. O jeito de falar, de responder, de dar aquelas cotoveladas simbólicas nele, tudo parecia com cara de Médio. Ou era o efeito piá observado antes, vendo a gurizada do sétimo e do oitavo se exibindo? Não tinha certeza, pois por vezes agia com tal infantilidade que nem mesmo se aguentava. Queria deixar de lado esse pensamento, quando foi chamado por Jonas. 

“Bah, mas já quer começar o ano trovando, cara? Nem deu tempo pra nada ainda…” 

“Pior que a guria que me chamou. Sério!” 

“Que chamou o quê. Deixa de ser!” 

“Tô te falando, meu! Ela me deu duas cutucadas na cintura. Se bobear, tem até uns microrroxos aqui”, levantando o moletom para se observar. 

“Tá, tá, não quero ver teu lombo. Nossa sala é a 21, bem do ladinho da escada.” 

“Vai dar pra ver todo o trânsito”, riu-se. 

“Inclusive a Isabella, que vai estudar na 23, hein? Hein?” 

Riram. Antes mesmo que ele pudesse caminhar tranquilamente para a sala, viu a menina voltar com um rosto de poucos amigos. Assim que passou por ele, chamou-a: 

“Meu nome não tá na lista”, respondeu. 

“Claro, tu foi ver a lista do Fundamental. Tu é do Médio, né?” 

Ele a olhou, abriu os braços timidamente, olhando para cima. 

“Nono ano”, falou. 

Alisson observou-a bem. O rosto até parecia com traços de menor, com a bochecha um pouco mais lisa, o lápis na linha d’água de quem era iniciante, mas o piercing no nariz, a própria vestimenta… Não. Não podia ser do Fundamental. 

“Fala ali com a Cláudia. Ela é de boas mesmo.” 

“Tá. Fazer o quê…” 

“E se eu for catar os nomes nos nonos anos, como vou achar o teu?” 

“É Manuela”, disse, virando-se, com o canto dos olhos arrebatando as pupilas de Alisson. 

[O livro MOSAICO DE SANGUE estará disponível a partir de maio, nas versões física e digital. Aguarde!]

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