1984

Em muitas das memórias que guardamos da infância, dificilmente alguma delas remeta ao nosso tempo de tenros bebês iniciando na caminhada da vida. Mal lembramos dos sons achocalhados dos brinquedos, das cores de nossas cobertas, do gosto das papinhas que viajavam num avião cheio de estranhos sonhos que alguém emitia junto a uma colher. E é a partir daí que as músicas ganham importância.
Téo saiu de casa cedo, naquele dia. Após o trabalho, no fim da tarde de sábado, iria à casa da mãe para, com ela, visitar o apartamento de sua avó, já vazio de seres, mas repleto de memórias físicas e afetivas. Era momento de esvaziar o espaço, uma vez que já se comprometera a sua venda para um novo casal com filhos, que certamente iniciaria ali um novo esboço de boas memórias.
“Chegou tarde”, ela me disse, ao entrar no carro.
“Não deu pra vir antes.”
Saímos. Viajamos os cerca de quarenta minutos que distanciavam o apartamento do Centro Histórico ao apartamento em que sua avó passou os últimos quinze anos de vida. Perto de um grande hospital, de ajudas com o câncer e de súbita aparição de um problema cardíaco, que mal a permitiu ser atendida em casa. Em quinze anos, ela esteve boas vezes lá, mas também estivemos muito boas vezes com ela: aniversários, jantas de final de semana, um passeio ou outro perto do prédio, no shopping próximo.
“Lembra quando tua vó queria ir até o shopping de tênis, para ver se corria em menos de dez minutos até lá?”
“Lembro. Ano retrasado ainda. Parece que faz tanto tempo.”
“Imagina com tudo o que tu vai ver lá”, ela disse.
A avó guardava muitas coisas de avô, da mãe, das suas três tias, dos netos. Até de sobrinho-neto ela tinha alguma coisa, um lenço, uma roupa de bebê, coisas assim. Lembrou-se de que, quando a mãe queria colocar fora suas fichas de avaliação da época da educação infantil, ela se atirou, braba, dizendo que aquilo não era coisa de se por fora. A velha era chegada numa lembrança física.
Estacionei o carro, entramos no prédio. Na frente da porta do apartamento já não havia o anúncio de venda. As tias de Téo já haviam levado boa parte dos móveis. Sua mãe não queria nada: “nada mais de velharias.” Veríamos, então, algumas coisas que pudessem ser aproveitadas na casa da mãe ou na sua.
O cheio de fechado e a poeira deram seu sinal assim que a porta foi escancarada. Parecia que o que ainda restava se aliviava por ter alguém colaborando com a entrada do ar dentro do espaço, como se estivesse prendendo a respiração. No entanto, quem fazia isso eram ambos, mãe e filho, para abrirem as janelas e darem início aos seus afazeres.
Entre um espaço e outro, abre portas ali, abre gavetas acolá, uma série de desorganizações eram vistas. Téo chegou a se assustar com tamanho desapego, mas lembrou que provavelmente os visitantes anteriores já teriam realizado suas ações desorganizantes.
“Mãe, esse bloco de anotações era de quem? Não tem nome.”
“Esse era do teu primo Dado. Ele sempre desenhava aquele símbolo no canto direito, olha.”
VH.
“Ah, verdade. Até tem umas rasuras de letras de música aqui.”
Deixou o bloco num canto e voltou à procura de algo que lhe pertencesse – ou que viria a ser seu. Algum tesouro, alguma lembrança gostosa de ser guardada. Mas é de sua mãe que veio algo de que pudesse realmente se interessar.
“Olha isso aqui. Teu álbum do primeiro ano.”
Fazia muitos anos que não via aquele álbum. Permeado de fotos de bebê, de pó e de alegria singela da primeira infância. Um bebê risonho, uma mãe alegre, uma avó satisfeita. Três gerações unidas em uma sensação de prazer que se alinhou durante tantos anos de suas vidas.
“Teu pai, pouco antes de me largar por aquela ordinária”, disse a mãe, ressentida.
Era a sua cara. Seu rosto escancarado naquela foto, mas em outro tempo e outro espaço. Ele era aquele bebê de branco, todo enrolado em tecido quente, mas seu rosto estava em seu pai. Isso podia explicar muitas coisas em sua vida posteriormente. Mas a mãe virou a página e transfigurou as memórias.
“Ó, tu e teu primo Dado. Ele te pegou no colo nesse dia e fiquei tão desesperada por tu poder cair que logo ele te devolveu pra mim”, disse ela, rindo.
Téo não conseguiu dar a mesma risada de antes, pois a foto do pai lhe impressionara. No entanto, tentou encontrar nas vestimentas e nos colos alguma memória que lhe trouxesse acontecimentos daquele tempo. Era difícil lembrar, pois o bebê não necessariamente registra a imagem em si, visto que seus olhos e seu cérebro estão em franco desenvolvimento. Mas as sensações…
“O Dado e o Pedro te colocaram a roupa neste dia.”
Téo estava de preto, com uma faixa branca na cabeça. Os cabelos estavam loiros e alongados demais para uma criança – ainda mais para ele, que tem os cabelos escuros. Era tudo muito estranho.
“Eles queriam fazer contigo a mesma coisa que uma capa de um disco. Só que precisavam de alguma coisa que não lembro o que era. Eles queriam te dar um cigarro para segurar, daí já me meti e atrapalhei a ‘boa intenção’ deles”, disse.
“Que disco, mãe?”
“Não lembro.”
“Será que ainda tá por aqui?”
“Tua avó guardava isso tudo na saleta. Dá uma olhada lá.”
A saleta um quarto que ela transformou num espaço só dela. Lá não costumava receber visitas ou qualquer pessoa. Ela dizia para sua mãe que ali poderia ficar quieta, sem ninguém incomodando – então não poderia ter rastro de gente. A mãe ria como se fosse pouca coisa, mas para a avó não era: trazia a paz que almejou durante muitos anos de sua vida.
Os móveis já haviam sido levados e restaram três grandes caixas, cheias de material bagunçado. Parecia apenas lixo. Téo, porém, começou a mexer nos papéis, nos objetos, colocando a mão cada vez mais fundo no material. Mexia, remexia e nada. Mudou de caixa, na qual encontrou basicamente as mesmas coisas: papéis de carta, lápis, um ou outro livro literário, alguns cabos de extensão, um ou outro pote com botons, uns vinis de histórias infantis.
Parece que, neste momento, uma aura de recordações luminosas pendeu pelo teto da saleta e abriu diversas imagens espalhadas pelo espaço. Por um lado, o toca-discos antigo da velha casa do sítio, em que escutavam diversas histórias para crianças, como O patinho feio e Aladin, sobre a qual Téo ensaiava uns passos toscos para conquistar a bela Jasmin de seu imaginário; de outro, os primos mais próximos, como o Dado e o Pedro, jogando futebol de botão no canto da sala e o próprio Téo se aproximando com uma pequena caixa plástica e seu time de galalite recém dado pelo avô; virou-se e deu-se de cara com a avó lendo um enorme livro colorido e cheio de ilustrações do Charles Perrault; mas, logo a sua frente, os primos riam muito ao vê-lo, fazendo-o pular várias e várias vezes ao som de um teclado distante, cujos acordes ele não conseguia recordar direito. Então, pegando os discos infantis, desceu um pouco mais e lá estava o estranho vinil a que sua mãe talvez estivesse se referindo.
“Mãe”, voltou para a sala, “por acaso era esse disco?”
Ela sorriu muito ao ver sua imagem. Um anjinho loiro sentado, com as asas pendentes, olhando para a sua esquerda, fumando e com o maço de cigarro em sua frente, como es estivesse num balcão de bar.
“Esse disco tem uma música que te fazia ficar pulando o tempo inteiro. Teus primos adoravam e tu, como era muito pequeno e não discernia bem as coisas, ficava pulando de um lado para o outro enquanto eles cantavam esse negócio. Era engraçado”, finalizou.
Era o 1984, do Van Halen. Não lembrava de tê-lo escutado em nenhum momento da vida. Contudo, ao lembrar daquela imagem dos primos rindo olhando para baixo e com a sensação de levitar em certos momentos, despertou demais a curiosidade de Téo. Resolveu pegá-lo como uma de suas lembranças, recém identificada pela memória.
Ao saírem com poucas coisas de lá, fecharam a porta e se despediram do espaço. Era o último adeus ao passado e às memórias finais deixadas pela avó. Ao entrarem no carro, botaram os novos velhos pertences no banco de trás e partiram rumo ao seu presente.
Téo deixou a mãe em casa, que entrou vagarosamente pela porta do edifício com uma pequena sacola de lembranças. Ele acionou a marcha do carro e partiu rumo à sua residência.
Ao chegar em casa, acendeu a luz. Tudo no seu lugar. O apartamento bem fechado, janelas por abrir, tudo com cheiro de que o sol havia há pouco deixado suas marcas. Não tinha por hábito se encerrar tanto, mas nos últimos tempos parecia ter criado motivos para tal.
Largou suas coisas na mesinha de centro da sala e pegou a sacola com o LP. Manuseou a capa, sem ainda tirar o disco de dentro: “que coisa velha”, pensou. Leu a lista de músicas no verso, vendo o rosto de uma banda de hard rock iniciada nos anos 70. Não se reconhecia naquilo.
Então fez um movimento involuntário: olhou seu toca-discos novos, que parece com uma maleta aberta. Olhou para o LP. Resolveu que era hora.
Ao retirar o disco da embalagem, uma surpresa: havia uma pequena missiva ali. Bem curtinha, escrita a mão. A letra certamente era da mãe. E não houve dúvidas: “A primeira vez de Téo com Jump”. Era tudo o que continha a carta. Mais nada.
Levantou, foi ao toca-discos, colocou o LP e começou. A instrumental 1984 e toda sua preparação para o que viria foram aos poucos enchendo o peito de Téo. O que seria daquele momento, de agora em diante? Que memórias aquilo traria para sua vida? Que anseios o passado recordaria ou deixaria de vez para trás? Não sabia, mas a música finalizou.
Então, a Roland de Eddie Van Halen começou. E, como num passe de mágica, Téo fechou os olhos e começou a ter flashes passando por seu rosto. Primeiro um, depois o outro, mais outro, quatro bem curtos, os últimos quatro mais curtos e alongados ao fim. Vinham Dado, Pedro, Helô, Júlia, todos correndo pela sala da casa do sítio, em que a avó xingava para que parassem para almoçar; via-se com um sorrisão gigante correndo e pulando pelo campo aberto, tocando os galhos das árvores e reinventando seus sentidos; um ou outro tombo acontece, enquanto seu corpo adulto sente nas nádegas e nos pés os efeitos daquele tempo. Então pensou no Dado e no Pedro e os viu com esse mesmo som, imitando o David com poses e risadas muito escancaradas, se encarando como se fossem correr um grande risco sobre alguma coisa… Aí pulavam. Pulavam, várias e várias vezes. E a criança que via aquilo pulava e sentia flutuar. A memória também pulava, como se impactasse os arranhões que o passado tentava simular. O corpo do homem pulava, alegre, como se nunca houvera pulado. E com gosto acompanhava o ritmo dos solos, da guitarra ao teclado, somados à bateria incessante do Alex, até que aos poucos tudo fosse cedendo, cedendo… e voltasse para o início da música, com seus flashes. O homem, a memória e a criança fundiram-se num só, que buscou seguir a letra da música e toda a felicidade irradiada por um som que se confundiu com o tempo e com suas raízes.
Ao final da música, parou tudo. Desligou o aparelho e parou. Abriu a janela, deixou o ar entrar e fazer o pequeno apartamento respirar. Os raios solares intensos daquele dia refletiam a energia emanada pela música e sentida por ele, do início ao fim. Apoiou-se no parapeito e observou, ao longe, um grupo de crianças brincando na praça ao lado do condomínio. Sentiu uma ânsia lhe subindo pelo corpo, mas não algo que fosse negativo ou infeliz, muito pelo contrário: um desejo grande de ver naquelas crianças a alegria que um dia teve em sua vida. Tudo era passado, tudo era diferente, mas a sensação que as memórias trouxeram só lhe permitiam querer que aquilo se perpetuasse de alguma forma. Voltou-se para dentro de casa, ligou o notebook, que já estava na sala, sentou-se defronte a ele e, por intenção ou por puro desejo, pôs-se a escrever:
Em muitas das memórias que guardamos da infância, dificilmente alguma delas remeta ao nosso tempo de tenros bebês iniciando na caminhada da vida. Mal lembramos dos sons achocalhados dos brinquedos, das cores de nossas cobertas, do gosto das papinhas que viajavam num avião cheio de estranhos sonhos que alguém emitia junto a uma colher. E é a partir daí que as músicas ganham importância…

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