Crônicas do Óbito [10]: Não me faço de rogado

Na última vez que o pai esteve em minha casa, viu a horta da Karol. Ela organizou tudo à direita do nosso pátio, para o lado da casa em construção, vizinha nossa. Plantou tomate grape, manjericão, cebolinha, entre outros condimentos para temperar a comida.
“Tá bonito esse tomate, hein, ô, Karol?”
“Tá sim. Quer levar alguns para casa?”
“Eu quero”, respondeu rindo.
Algumas coisas não davam para entender. Para dar coisas a ele, era uma luta, mas sabíamos que as utilidades sempre serviam. Quando era relativo à comida, não tinha muito erro: verduras. O pai sempre encheu o prato com muito verde, fosse alface, radicci, rúcula. Tinha espaço para os tomates, as cebolas, os pimentões. Era tiro certo.
A questão, no entanto, ia um pouco além disso:
“Quanto o senhor quer”, educadamente perguntou a Karol.
“Tudo que puder me dar”, ele respondeu.
Ele não tinha papas na língua para esse assunto. E ainda completava:
“Esse tomate é caro e nunca compro. Quero bastante”, disse.
Ao pegar a sacola com tudo que ela colheu, contemplou os tomates e ainda disse:
“Mas eu quero uns manjericões também.”
E lá foi a Karol de novo fazer a colheita.
Ele, rindo, como muito fez nos últimos anos, ainda soltou:
“Eu não me faço de rogado.”
Fazer-se de rogado é uma expressão até bem tradicional por aqui, mas nem todo mundo entende. Quer dizer que a pessoa não se faz para nada, que ela vai dizer se quer ou não e pronto. Nem que roga por alguma coisa, que deseja algo, que não pode fazer num determinado momento. E o pai não se fazia de rogado para nada há anos. Até para o que ele deveria fazer.
A sacola foi cheia de tomates e de manjericões. Certamente sairia uma salada bem cheirosa com aquilo tudo. Quem estava lá se despediu da Karol e eu os levei para aquela que foi a última viagem de carro em que conduzi meu pai.
“Lucas, aquela churrasqueira é boa mesmo. Temos que tentar um churrasco a lenha.”
Pena que não aconteceu. Quis a vida que o Seu Bonez se despedisse da gente antes de fazer o churrasco à lenha. Nunca se fazendo de rogado, disse, dias depois, que os tomates estavam ótimos – e que queria mais. Ficou por aqui uma vasilha cheia de tomates grape, que agora rogam para que suas vidas também sejam dignas de pratos como foram os de meu pai.

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