Quando parte um mestre?

Nos últimos dias, algumas situações pessoais de ordem negativa foram vividas por mim. Pareciam aqueles momentos em que uma tormenta deságua com tudo sobre ti, para então haver a reestruturação necessária. É como uma catarse inesperada, mas essencial.

Não falarei de casa, nem de vendas, nem de furtos, nem de qualquer coisa que possa envolver posses. Mais importante é falarmos sobre as pessoas, as relações, os aprendizados vivenciados. Minha formação acadêmica, por exemplo, se deu graças a alguns profissionais ilustres da área da Literatura, como a Maria Eunice Moreira, a Vera Teixeira de Aguiar, o José Fernando Miranda ou o Cicero Galeno Lopes. Com cada um deles certamente angariei um pouco da ação que hoje tenho com meus estudantes, bem como as formas de pesquisar e até alguns trejeitos.

Com o Cicero, por exemplo, aprendi realmente a ser acadêmico de Letras. Lembro que, na graduação, dois professores eram vistos com muito receio – para não dizer certo ódio: O Luis Carlos e o Cicero. Chamado por ele mesmo de “tio”, era um primor em explicações sobre a literatura, bem como pesquisava aprofundadamente sobre os temas que mais lhe interessavam, principalmente em relação à literatura e à cultura gaúcha. Ele, que vivera anos em Santana do Livramento antes de se mudar à capital, trazia consigo o sotaque, o mate e o gosto pelo tradicional gaúcho – tradicional mesmo, aquele que vem do “gaucho” do norte argentino (salve Martin Fierro!) e que encontra ressonâncias fortes por aqui (e como ele via no Donaldo Schuller e seu “O tatu”).

Pois nesta semana, o tio Cicero faleceu. Só li a nota da Associação Canoense de Escritores. A última vez que o vi faz cerca de cinco anos, em uma ida com o pessoal da Ópera ao Jardim Botânico. Parecia bem, apesar da respiração cansada e do caminhar um pouco mais lento que antes. O Tio Cicero deixou um legado muito positivo: de que a pesquisa era a maior base para o conhecimento. Obviedade? Eu não diria. Muita gente pensa que entende e que sabe o que lê, quando na verdade meramente decodifica termos e os associa à mente. Meu antigo orientador dizia que aprofundar era sempre necessário, em qualquer nível que estivesse a pesquisa em questão. Trabalhei com ele nas obras “Estudos das culturas gaúchas” (que não sei até hoje se virou livro, com outro nome) e “Literatura Brasileira comentada”, disponível para leitura e download gratuito na internet. Foi deste trabalho que nasceu meu primeiro artigo científico, em que comparava a questão amorosa na poesia do Álvares de Azevedo com uma desconhecida gaúcha daqueles tempos: Rita Barém de Melo.

Foi um baita professor. Tinha suas manias, como muitos doutores, mas as dele me eram altamente tranquilas de lidar. Seu corpo partiu à terra, sua alma ao céu, mas seus ensinamentos seguem comigo até hoje. Será, então, difícil dizer que ele partiu nessa semana. Afinal, estando nas minhas ações e no meu fazer acadêmico, ele já está eternizado – e aqui, ao meu lado, me fazendo reler o texto e me deter em cada detalhe antes de publicá-lo.

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