Durante muitos anos, o relacionamento com o pai teve altos e baixos. A separação entre ele e a mãe foi numa época muito conturbada da minha vida – e da deles, com certeza. Eu não sabia muito bem para onde correr em meio às definições estudantis e profissionais, pois havia me decepcionado de vez com a área biológica e quis abandonar a ideia de cursá-la.
O pai saiu de casa e foi morar no casebre que tínhamos num extenso terreno na zona sul da cidade. Era bem localizado, com acesso tranquilo ao comércio e ao transporte da região. Precisava de apenas alguma caminhada a mais que o Centro não trazia.
O tempo passou, me enfiei nas Letras – de onde nunca mais saí, por amor a tudo – e passei a trabalhar na zona sul. Muito de vez em quando nos falávamos, mas num certo dia isso mudou.
“Pai, agora me deram uns turnos à tarde, para aula de reforço com a gurizada”, contei.
“Que bom. Vai entrar mais grana.”
“Não é muita, mas já ajuda bastante. E eu vou ter de gastar na escola para almoçar, o que deve compensar um pouco.”
“A não ser que venha almoçar comigo nesses dias.”
O pai só convidava, raramente, para um churrasco ou outro aos domingos. Naquela época, eu ainda tinha a impressão de que, por termos ficado com a mãe, ele talvez tivesse nos “deixado de lado”. Se eu aceitasse o convite, o que era esporádico viraria regular e, certamente, mudaria a relação que tínhamos.
Então aceitei. Todas as quartas-feiras eu iria para a garagem transformada em JK para degustar o velho almoço do pai.
O portão gasto pela ferrugem e pela falta de cuidado abria com dificuldade. Era pesado e sempre saindo do lugar. O pai vinha à distância, depois de por um tempo observar minha chegada, mas como eu deixava meu material na escola consegui abri-lo.
“Hoje vai ter feijão”, disse, em meio a uma alegria contida.
Eu sorri e me sentei à mesa. O arroz do pai era empapado, mas bem temperado. Uma lustrosa salada verde compunha a mesa, como em todos os anos da sua vida.
“Agora, olha isso.”
Os bifes cobertos com presunto e queijo eram uma marca das poucas vezes que o pai cozinhava em casa. Quando menor, lembro do burburinho da frigideira pela mistura da água com o sal e a gordura da carne. O mesmo burburinho que escutei quando o pai tirou aquele bife molhado e colocou no meu prato, já servido das demais guarnições.
E era uma delícia. Uma delícia com gosto de infância, saudade, além de um tempero leve de um tempo novo que se avizinhava. Dali por diante, passei a visitar o pai com mais frequência e aproveitar aqueles almoços, ora com sabores de tempos distantes, ora com aperfeiçoamentos – de gosto e de sentimentos.
Assim foi. Dos cabelos grisalhos até o quase total clareamento. Entre os churrascos e os almoços de sábado, perdido em sabores e ilusões, até o dia do meu último aniversário, data em que nos vimos pela última vez. Sempre com um sabor de saudade.
Durante muitos anos, o relacionamento com o pai teve altos e baixos. A separação entre ele e a mãe foi numa época muito conturbada da minha vida – e da deles, com certeza. Eu não sabia muito bem para onde correr em meio às definições estudantis e profissionais, pois havia me decepcionado de vez com a área biológica e quis abandonar a ideia de cursá-la.
O pai saiu de casa e foi morar no casebre que tínhamos num extenso terreno na zona sul da cidade. Era bem localizado, com acesso tranquilo ao comércio e ao transporte da região. Precisava de apenas alguma caminhada a mais que o Centro não trazia.
O tempo passou, me enfiei nas Letras – de onde nunca mais saí, por amor a tudo – e passei a trabalhar na zona sul. Muito de vez em quando nos falávamos, mas num certo dia isso mudou.
“Pai, agora me deram uns turnos à tarde, para aula de reforço com a gurizada”, contei.
“Que bom. Vai entrar mais grana.”
“Não é muita, mas já ajuda bastante. E eu vou ter de gastar na escola para almoçar, o que deve compensar um pouco.”
“A não ser que venha almoçar comigo nesses dias.”
O pai só convidava, raramente, para um churrasco ou outro aos domingos. Naquela época, eu ainda tinha a impressão de que, por termos ficado com a mãe, ele talvez tivesse nos “deixado de lado”. Se eu aceitasse o convite, o que era esporádico viraria regular e, certamente, mudaria a relação que tínhamos.
Então aceitei. Todas as quartas-feiras eu iria para a garagem transformada em JK para degustar o velho almoço do pai.
O portão gasto pela ferrugem e pela falta de cuidado abria com dificuldade. Era pesado e sempre saindo do lugar. O pai vinha à distância, depois de por um tempo observar minha chegada, mas como eu deixava meu material na escola consegui abri-lo.
“Hoje vai ter feijão”, disse, em meio a uma alegria contida.
Eu sorri e me sentei à mesa. O arroz do pai era empapado, mas bem temperado. Uma lustrosa salada verde compunha a mesa, como em todos os anos da sua vida.
“Agora, olha isso.”
Os bifes cobertos com presunto e queijo eram uma marca das poucas vezes que o pai cozinhava em casa. Quando menor, lembro do burburinho da frigideira pela mistura da água com o sal e a gordura da carne. O mesmo burburinho que escutei quando o pai tirou aquele bife molhado e colocou no meu prato, já servido das demais guarnições.
E era uma delícia. Uma delícia com gosto de infância, saudade, além de um tempero leve de um tempo novo que se avizinhava. Dali por diante, passei a visitar o pai com mais frequência e aproveitar aqueles almoços, ora com sabores de tempos distantes, ora com aperfeiçoamentos – de gosto e de sentimentos.
Assim foi. Dos cabelos grisalhos até o quase total clareamento. Entre os churrascos e os almoços de sábado, perdido em sabores e ilusões, até o dia do meu último aniversário, data em que nos vimos pela última vez. Sempre com um sabor de saudade.