Final de ano e final de ciclo

Talvez a coisa mais tradicional em que as pessoas pensam nas viradas de ano frequentemente se associam a finais de ciclo. Uma saída de emprego, uma necessidade financeira que o 13º resolve, aquela resolução do início do ano que deu certo, o final do colégio. São diversas as possibilidades de reiniciar que encontramos.

Por um lado, fechamento de ano não precisa ser um final de ciclo: em meio às festanças cristãs e ao réveillon, parte-se para uma pausa, em maior ou menor escala, de de tudo aquilo que fizera até o momento. No meu caso, por exemplo, paro de lecionar e voltarei dentro de pouco mais de 40 dias.

O que às vezes a gente esquece é que o final de ano de um se mescla com o fim do ciclo, enquanto para si muitas vezes pode ser uma mera parada. E é nessas inépcias interpretativas que deixamos de lado a experiência mais profunda do olhar sobre o outro.

Ontem foi um dia de intensa comemoração. Meus estudantes do Terceirão do Rainha do Brasil se formaram. Antes disso, porém, levei uma fala a eles, tendo em vista que seu último período escolar seria comigo. Normalmente eu levaria alguns fragmentos do Asas da realidade para ler, mas achei muito próximo do que fizera em outras vezes – seria só mais um final de ano. Resolvi, porém, encerrar um ciclo.

Ao longo da carta lida para meus formandos, quis valorizar algumas especificidades: que a vida é feita de reencontros, que o primeiro encontro pode refletir no último, que não sou muito afeito a despedidas. Não consegui, por exemplo, fazer o reconhecimento do corpo de meu pai, quando de seu falecimento. Nos eventos de trabalho, normalmente saio à francesa, sem espaço para me despedir. Até o fato de envelhecer e abandonar certos hábitos me causam certa ojeriza. Mas a despedida daquela turma era inevitável e, ao mesmo tempo, reflexiva.

As diversas faces vermelhas e molhadas ao final do texto contrastaram com certa crueza demonstrada por mim. Trazer à tona as primeiras experiências que tive com eles em 2019 e relacionar com o fechamento de 2023, metafórica e argumentativamente, não foram um grande problema. O efeito causado naquelas cabeças e naqueles corações certamente me trouxe muito mais impacto. Era, de fato, o momento do fim.

Fui para a formatura deles após uma prova de seleção de emprego. Conforme disse para meu amigo Jéferson, parafraseei uma frase de outro amigo, o Cristiano: a gente não pode correr atrás de escolas, mas à frente delas. Não que eu deseje uma mudança profissional com substância, mas precisamos antever o que a vida pode dificultar. No entanto, voltei daquela seleção pensando no momento final com meus estudantes: abraços, fotos, cumprimentos felizes e registros no coração.

Pois não foi bem assim que aconteceu. Apesar de, na entrada, eu ter me feito bastante presente, em meio às conversas, aos abraços e aos risos com essa gurizada, a despedida mal houve: à francesa novamente, desviando dos olhares e dos grupos, respondendo apenas ao que fui chamado. Não sei se foi uma baixo autoestima me dizendo para responder apenas àqueles que se importassem comigo ou uma vergonha por estarem desfrutando de tanta felicidade enquanto eu via o tempo passar: os meninos e meninas já não existiam mais. Aquelas cabeças, aquelas vozes, aqueles corpos, aquelas ideias, tudo não era mais o que existia em mim. Eram formados.

Voltei sozinho, percorrendo o campus da PUCRS, que há quase 20 anos me acolheu em minha primeira pós-graduação, num longínquo março de 2005. Percorrendo as vias até o estacionamento, ainda pude flagrar uma tranca na passagem do tempo: um casal aluno meu do 1º ano, divertindo-se isolado dos olhos e das vozes dos outros, me chama para uma despedida em abano, ao longe. Assim voltei ao tempo em que estava, calando as dores da despedida.

Afinal, o fim de ano é um fim de ciclo? Sim e não. A nossa lida nos colégios mantém os olhares sempre nas mesmas faixas etárias – eu, vendo dos 15 aos 18, todo santo ano. Podem mudar os cabelos, os tons de voz, as agitações, os estudos e seus resultados, mas sempre são adolescentes encarando três anos de Ensino Médio. Isso mostra que só há final de ano. Quando observamos, porém, cada um que passa pela gente e pelas nossas ações, vendo os rostos agradecidos e animados pelo fim do colégio, não resta dúvida: o fim de um ciclo chegou.

E tudo isso porque ontem, antes da cerimônia, minha querida Letícia me entregou uma carta agradecida pela participação deste humilde professor em sua jornada. Um fim, de fato. Uma alma caridosa, intensa e cheia de vida que ganhou o mundo (e a UFRGS, saliente-se). Uma pessoa ímpar. Receber uma carta desta pessoa é, além de um prêmio para a vida, um recado para minha trajetória: encerrar ciclos com tanto amor é também um ato necessário para nossa sobrevivência.

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