Apenados pela vida

Hoje tive uma experiência nova pelo projeto Autor Presente. Não diferente de fato, pois a ação é a mesma que venho realizando desde março deste ano: videoconferência. O assunto inicial também me é bastante comum: leituras e implicações no cotidiano. O que não foi nada comum, mas digno de total respeito e admiração, era meu público: um grupo de apenados do Presídio Regional de Bagé.
Antes de qualquer conferência, sempre fico ansioso para saber como será a recepção, a troca de experiências, se o pessoal se envolverá com a fala ou se teremos distanciamentos. Não foi diferente hoje. O que não foi igual se concentrava na forma como eu conversaria com eles: eram leitores? Queriam realmente estar ali dialogando? Qual seria o nível de estudo do pessoal? As palavras da Marli, funcionária da Susepe com a qual tratei nesses últimos dias, me trouxeram uma mescla de alento e de desolação: eles queriam conversar.
Conectamo-nos pelo Skype e lá estavam eles: Reinaldo, Fernanda, Belquis e Natália. Cada um com o seu motivo de estar lá: atuando junto ao administrativo do presídio ou na enfermaria, estabelecendo uma nova possibilidade de vida por meio do trabalho e das leituras. A Belquis leu 24 livros em 11 meses. O Reinaldo encontrou na leitura e na escrita cristã a sua verdade. A Natália escreve para conseguir expor o que sente. A Fernanda segue em busca de encontrar o que a alentasse nesse momento.
Quatro vidas na minha frente que se concentraram num mesmo espaço por contas do que a vida (não) lhes oportunizou. Um, por porte de drogas, posto como traficante, mesmo sendo usuário; outra, por receber tão pouco salário que encontrou no crime uma forma de dar algo mais para o filho pequeno. Histórias e mais histórias de tantas pessoas que se repetem por aí, entupindo celas com diversos silêncios que a vida insiste em lhes trazer. Calando aquele que não encontra uma melhor oportunidade de ser alguém no que esta nossa falida sociedade promove.
Falei de leitura, de benefícios, de criticidade, de realidade. Conversamos sobre o cotidiano, a COVID19, as fantasias das pessoas. Ouvi muito sobre seus momentos, seus anos de encarceramento, seus desejos. Trocamos ideias, informações, sentimentos e conhecimentos como qualquer ser humano faz: olhando nos olhos, mesmo que distantes. A Fernanda me perguntou como eu fazia para escrever livros, o que respondi com a prontidão que comumente uso. Perguntei a eles se conheciam Carolina Maria de Jesus. Nenhum. Apresentei-a, expliquei como ela começou a ler e escrever e, sob olhos admirados dos quatro, falei que todos nós temos a oportunidade de escrever a nossa história, mas também de reescrevê-la. Que somos potencialmente aptos a reeducar nossos caminhos, se assim o desejarmos. Mas nós precisamos desejar. Os sorrisos sinceros vieram à tona – bem como algumas lágrimas – e pude notar que minha ansiedade havia se dissipado há muito tempo. Afinal, estive com quatro seres humanos dispostos a uma conversa comigo.
Finalizamos nosso encontro com muito prazer e um largo sorriso. O objetivo havia sido atingido. A Marli, ao final, agradeceu efusivamente pela conversa, pela alegria com que os apenados saíram daquela sala do fórum de Bagé. Eu, porém, apesar de toda a sensação positiva que aquele momento me trouxe, ainda não deixei de me perguntar: por que será que a vida faz isso com as pessoas? A única resposta que me veio, observando meu contexto e tudo que está em minha volta, foi certeira: agradecer as oportunidades que a mim foram dadas, pois alguém deixou de tê-las por essas inconsequências da vida.

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