Crepúsculo (I e II)

(Texto original, sem revisões, antes da primeira publicação.)

I

– Ó, vê se tá bom…

– Vejamos…

Estavam os dois sentados em cadeiras de plástico, daquelas de praia, separados por uma mesa de madeira reclinável. Ela observava-o atenta, olhando dentro de seus olhos, amedrontadamente curiosa por uma resposta que ele desferiria. Bom? Ruim? Mais ou menos? Não, é bom ou ruim! Mais ou menos, não! Mas ela apenas queria saber o que se passava na cabeça do moço.

– Olha, meu bem, temos algumas coisa para retocar aqui… Alguns pontos, vírgulas, ortografia… Mas na questão estrutural, tá ótimo! Acima disso, teu texto tem coesão, é coerente, muito bem tecido… Segue assim!

– Capaz… Tá bom mesmo? Eu pensei que tava uma porcaria…

– Não, não… Muito bom! Mas tu deves abrir os olhos para esses errinhos aí que podem acabar te comprometendo.

Ela estava prestes a fazer vestibular. Seria seu primeiro. O nervosismo tomara conta dela dias antes. Pegava os livros, lia e relia, muitas vezes sem mesmo entender. Questões de biologia, geografia, espanhol, química, matemática, história, física e português. Fazia. Refazia. Fazia de novo. Acertava. Errava. Acertava. Acertava. E assim ia.

Poucos dias faltavam para o vestibular e, depois de inúmeros sábados com a ajuda dele, ela já conseguia fazer redações de teor bastante interessante, de qualidade boa, expressando sua visão perante qualquer fato. Receava apenas o tema dessa que cairia na prova.

– Bah, imagina se cai aquela maldita que eu não conseguir nem pensar direito!

– Calma, não se aquela… Vai ser uma bem simples, que tu já fizeste, que tu poderás, quem sabe, lembrar dela… Verás, não há de ser nada impossível!

– Bah, Deus te ouça… Mas se cair aquela, juro que pulo dessa sacada!

– Hehehe… Calma, não será necessário…

Algumas vezes, as palavras do moço soavam com tanta suavidade que ela aquietava os nervos. A idéia do concurso, de ser aprovada no curso desejado, não saia de forma alguma da cabeça dela. Mas era amenizada com a presença, com as palavras, com o carinho daquele que ao seu lado ajudava. Ora paravam e começavam a conversar. Ela contava sobre a filha de sua prima Elaine, a Bi. Por vezes, ficava vermelha ao demonstrar tanto carinho que sentia pela pequena. Contava de suas facetas, de suas belezas e brincadeiras, até a hora que vinham as lições:

– Mas teve uma hora que eu não agüentei mais… A guria, deitada na minha cama, com aquele tamanho mínimo, me tirava todo o cobertor! Acredita? Vou te contar… E ainda por cima reclamava quando eu puxava um pouquinho para mim… Um pouquinho! Aí acabei me indignando, fiz ela acordar e se colocar no lugar… hehehe – falou, sempre num tom irônico e descontraído.

– A Bi é a coisa mais querida… O sorrisinho que ela abre quando nos referimos a ela! Muito doce…

– Ela tá aprendendo a ler sabia?

– É mesmo? – Indaga-a.

– Aham! Ela já consegue ler uns nomes, algumas placas nas ruas… Até pegou uma revistinha que eu tinha quando pequena e leu, aquela safadinha…

– Ah, que legal! Vou dar um livro para ela, então!

– Ah, não precisa se incomodar…

– Capaz, que incômodo o quê… Vai ser um prazer ver essa menininha lendo!

Ela abria um sorriso, fitando os olhos dele. Se conheciam há mais de dois anos. Porém, numa situação adversa foram apresentados. O modo de como se acharam tornou-se comum de uns anos para cá: internet. Alguns meses falando-se por e-mail, até o dia em que resolveram se encontrar. Sendo que ela comentava, aos domingos, quando se falavam pelo computador: “passei aí na frente da sua casa hoje”. Moravam muito próximos e nunca haviam se cruzado. Duas quadras de diferença. A melhor amiga dela era praticamente vizinha dele. Nem assim. Porém, alguma obra do destino os botou lado a lado. E, numa tarde ensolarada de quarta-feira, ambos se encontraram. O moço saiu de casa, todo arrumado e foi até a casa da menina. Passara por lá muitas vezes, nunca pensou que seria o recanto da doce menina. A mãe a acompanhou até a saída do edifício, talvez para saber quem era o tal elemento que a filha iria sair. Visto quem era, concedeu à filha o direto de seguir com ele. E foram, caminhando, rumo ao shopping próximo do centro da cidade. Papo vai, papo vem, sorrisos aparecem, atenções dobradas. Chegam ao local, percorrem sua extensão, entram numa livraria e lá buscam algo que nem eles sabiam o que era. O carinho entre os dois aumenta, até a hora em que dão-se as mãos, quando viam os cd’s. Ao saírem da loja, uma conversa séria. Uma indecisão. E um beijo. Um beijo terno, acariciado pelos lábios, nutrindo um carinho desigual um pelo outro. No restante do tempo juntos, beijos e mais beijos. Sempre com alguma palavra.

Os dias se sucederam e, numa certa vez, uma inesperada “aula de Literatura” surgiu. Ela tinha uma prova. Ele tinha desejo. De vê-la. De ajudá-la. Mas, acima de tudo, de beijá-la. A situação não permitia qualquer tipo de movimento, afinal, estavam na casa dela, debaixo dos olhos da mãe da menina. Ele conheceu o irmão da guria naquele dia, uma figura bastante interessante, tímida, mas sempre com olhos de bom-amigo. A mãe era uma pessoa extremamente querida, dedicada, apoiadora e incentivadora de que os filhos tivessem um futuro perfeito. Não permitia heresias nem excesso de divertimentos: queria sim, filhos educados e feitores de grandes ações, o que os tornasse dignos de suas palavras, de seus objetivos e de seus sonhos. E aquela primeira impressão foi a que ficou. E foi a que se comprovou no decorrer do tempo.

Ambos não continuaram juntos. Ele queria. Ela não. Ela tinha seus motivos que, apenas meses depois, ele viria a entender. Chorou, sonhou que seria com ela que viveria seus belos momentos. Mas tudo isso poderia vir. Um dia.

Dois anos depois, reencontraram-se. Internet foi novamente o ponto de encontro. Ela, chateada, saída de uma relação que lhe causara muito desconforto. Traída. Ele abandonara a namorada há quase oito meses, dizendo que seus gênios não mais competiam, que sua vivência não era mais bem vinda. Ela formara-se no colégio, vinha fazendo cursinho pré-vestibular junto com a cunhada. Ele vinha de um 5º semestre hesitante na faculdade, notas altas e quase certeza de um belo futuro acadêmico. Resolveram se ver. Na casa dela.

A manhã daquele dia não poderia ser mais agitada. Ele levantou-se cedo, preparou algumas coisas que deveria levar para a faculdade, tomou banho. Perto do meio-dia estava pronto. Ela levantara-se um pouco tarde, tomou seu banho, cuidou de sua face e seu cabelo. Unhas. Preparou-as. Ele ajeitou seu cabelo, apenas ao pente. Ela escovou seu cabelo, colocou a roupa. Prontos. Ele sai de casa.

No meio tempo em que não se viram, ela mudou-se para um bairro distanciado do centro. Pouco tempo depois, devido às dificuldades que enfrentaram por aquelas bandas, regressaram. Mesmo assim, a distância entre ambos praticamente não diminuíra: aumentou meia quadra. Assim, em cerca de 5 minutos, ele chegou à casa da moça. Tocou o interfone. “Quem?” – ela pergunta. “Sou eu, o Bobo” – responde. Ela diz que já iria descer. Ele fica nervoso. Alguns segundos mais e a maçaneta da porta do edifício é girada. E ela surge. “Oi, menino!” – cumprimenta, com seu encantador sorriso exalado pela face. A Gi já tinha seus 18 anos, era uma menina-moça das mais belas. Seu olhar penetrante, de preciosas pedras oculares em um verde-castanho vivos. O cabelo longo, fino, de um brilhante castanho escuro. O nariz cintilante, destacado pela beleza. As maçãs róseas, mais vistas de quando sorria. E o sorriso. Aquele sorriso lindo de outrora estava cada vez mais lindo. A boca de carne massuda, de dentes alvos, numa mescla que só poderia resultar num sorriso como aquele. Havia ela atingido o auge da beleza feminina aos 18 anos de idade? Com certeza não. Prolongar-se-ia por uma centena de milhares de anos-luz, ou o tempo de sua sobrevivência. Ela convida-o para entrar e sobem até seu apartamento.

Gi observa os passos do amigo. A calça escura em contraste com o sapato bege. A magreza que lhe era comum não mudara. A delicadeza pela qual a tratava também. O cabelo castanho-negro um tanto compridos, os olhos expressivos, de um castanho-mel pouco visto. Um projeto de barba que lhe nascia pelas entranhas. A camisa verde que destacava como estava fisicamente. Bem, parecia. Numa mão, a pasta em que levava seu material para a faculdade. Na outra, um tal bônus que ele conseguiu para que ela se inscrevesse no vestibular da faculdade que estudava com bom desconto. Ela aceitou e, dias depois, se inscreveu lá.

Aquele dia foi bastante interessante. Puderam se observar, num jogo óptico de valor desconhecido. Buscavam na face, nas mãos, nos braços, as formas disformes de tempos atrás. Porém, acima disso, puderam comprovar algo que, naquele momento, parecia não importar: ambos haviam crescido. Bobo passou por situações importantes para sua vida. Ela também. Pelo pouco tempo que tiveram, puderam ao menos observar-se. E já valeu muito. Combinaram de se ver no final de semana, para que o garoto a ajudasse com redação pro vestibular. E assim foi, nos finais de semana que se sucederam:

– Vi um livro, lá na Feira de Canoas, que – acho – a Bi vai gostar! – comenta Bobo.

– Hmmm… Que bom!

– Vou ver se compro semana que vem, pois quero encontrar algumas coisas para mim, também…

– Tá certo… – e sorria.

Logo, a mãe chama:

– Vocês não querem tomar um café? Está servido!

II

Sentados à mesa, põem-se a servir. Café, chá, refrigerante, pão, bolo, bolachas, manteiga, doces, tudo com suas variações. A sala cheia. Ou melhor, a mesa.

Seu Cacá sentou-se na ponta. O patriarca da família era um homem grisalho, de sorriso sempre colado ao rosto. Dona Vevê questionava:

– Não conhecias o Cacá, né, Bobo?

– Não, não…

– Pois é… Quando morávamos lá na outra rua, tu nos visitaste e não se pechou com o meu velho…

– Pois é… Mas cá estamos nos conhecendo! Hehehe – replica, sorrindo.

– É… Uma hora tinha de ser! Hehehe

– Bom, mas meu irmão tu já conhecia… E a Terezinha não… – fala Gi, apontando para cunhada.

– É verdade… Mas que bom que sempre há tempo de poder conhecer todo mundo!

– Concordo – fala Seu Cacá – ainda mais quando sabemos que é gente de bem, que não tem intenções maléficas, não concordas?

– Claro… – responde Bobo.

– Mas ai… Esse vestibular tá nos matando, né, Gi? Eu to que não agüento mais pegar nos livros… – fala Terezinha.

– É – responde a cunhada – também ando muito cansada… Ainda bem que falta pouco tempo para fazer esta prova, ir bem, passar, comemorar… hehehe

– Vocês vão passar, sim… E comemorar também! Ou o Bobo tá vindo aqui à toa para ajudar com redações, Gi? – questiona ironicamente a matriarca.

– Claro, né… E tá ajudando sim! – fala, olhando para Bobo, tendo este respondido apenas com um sorriso e um olhar bem na pupila da amiga.

– Só não inventem de ficar nervosas no dia da prova, hein? Isso vai estragar vocês. – relembra o irmão, o Fê.

– Ah, nem inventa! Nem me fala nisso que já vou ter que levar comprimidos comigo! – releva Gi.

– E o Gardenal também… hehehehe

– Ah, abobado!

E todos riem. Naquela mesa, o que não transparecia de modo algum era infelicidade. Todos bem, dispostos, sempre querendo lutar pelos objetivos pretendidos. Cada um com o seu. A Gi queria ingressar para faculdade de Fisioterapia; A Terezinha, para de Nutrição. O Fê trabalhava e estudava Engenharia, queria manter-se e poder aumentar sua poupança. Dona Vevê, dona de casa, e Seu Cacá, chefe de manutenção de um hospital conceituado da cidade, queriam poder administrar a família e viver bem. Já o Bobo, esse queria se formar, entrar em curso de pós-graduação.

Enquanto o lanche da tarde caminhava para seu final, Dona Vevê lança uma idéia na mesa:

– Se vocês realmente forem aprovadas no concurso (que Deus queira isso), acho que vocês poderiam sair para fazer uma festa, descansar um pouco, abandonar a idéia de ficar estudando toda hora, todo tempo… Vocês têm que se divertir um pouco!

– Hmmmm… Gostei da idéia! – disse Gi, sabendo que é difícil a mãe mencionar tais palavras.

– Tu as acompanharias, Bobo? – pergunta a mãe.

– Claro… Será um prazer!

– Então, estando vocês aprovadas, poderão festejar!

– Aeee, mãe! – vibra a doce filha.

Ficara acertado. No fim de semana posterior ao da prova do vestibular (ou ainda no próximo), comemorariam. A essa altura, Bobo já era considerado por Dona Vevê como um tipo de membro da família. Ele achava essa idéia um tanto estranha, tendo em vista que era amigo da Gi, até então. Mais tarde, o tempo lhe mostraria que muito ainda iria acontecer, e que essa idéia não mais seria errônea. […]

(BONEZ, Lucas de Melo. Crepúsculo. In: Confissões. Porto Alegre: Ideograf, 2015. p.65-93)

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