A última peregrina: um rastro de coragem

Quem viu as forças do Mundo

Nunca soube realmente: fundo

É o coração dos desalmados…

O ataque foi devastador. Uma série de dreds sacrificados num único local, divergindo de tudo o que se havia conhecido sobre eles. Seriam falsas as narrativas dos Peregrinos? Ou não haviam dado a devida importância aos seres escuros? O certo é que a força com que avançaram era distante de qualquer conhecimento prévio.

Abe estava cansado. Respirava pela boca, reverberando um estranho som que vinha das profundezas de seu corpo. Kyra o observava atenta, sem deixar de lado o vigoroso Ombe, em pé, mirando o horizonte:

– Eles virão com mais força – sentenciou.

A jovem baixou os olhos. Vendo que ainda desconhecia o Mundo, sentiu-se impotente. O encontro com os twin bears já havia sido diferente do que imaginara. Uma das canções peregrinas, entoadas por sua mãe, dava conta de que essa raça era combativa e dócil. Combativa foi confirmada. Ainda esperava, porém, um rastro de docilidade que viria daqueles dois.

– Iremos para onde agora – questionou a menina.

Abe levantou os olhos. Disparou um deboche, encerrando a respiração forçada:

– Comer.

Ombe deu de ombros. Concordaria com o irmão, se não tivessem recebido a missão de levar a Última Peregrina ao Mago Barber. Afinal, desde que este homem transcendeu, prestava favores importantes aos bears, como forma de manter a comunicação e a paz entre ambos.

– Depois comeremos. Falta pouco, Abe.

Kyra levantou-se. A jovem amorenada e de olhos claros ainda não havia tirado o capuz sobre sua cabeça. Foi ao lado de Ombe, o bear maior, que pela primeira vez sugeriu alguma ideia, sem se dar conta da importância que poderia ter:

– Comer pode ser mais importante do que transcender, enquanto formos mortais.

Alguns segundos de silêncio. Poucos, pois Abe riu. Concordou com a menina. Sua fome era tamanha, após destruir tantos dreds.

– Aqui mesmo podemos comer, Ombe. Olha quantas carcaças de dreds! Eu ficaria bem por umas boas refeições!

Tais palavras assustaram a Peregrina. Ela não imaginava que os bears comiam outras raças. Cresceu acreditando que a flora gerada em Pandatum fosse suficiente para sua alimentação, contando ainda com as pescas noturnas, tão famosas. Ao mesmo tempo, pensava que há dias não estavam em casa, que eles comiam enquanto ela dormia, que seu próprio alimento, ainda trazido de Tumbil não seria suficiente para os próximos tempos, caso as adversidades se tornassem mais complexas. De que adiantaria encontrar o Mago se nem mesmo os bears eram capazes de ficar mais tempo sem comida?

– Comam – disse Kyra.

Abe sorriu, observando o campo dos mortos. Ombe apenas a observava:

– Quer mesmo ver isso, Peregrina?

– Não devem passar fome. Não por mim.

– Talvez o que tu veja nunca tenha aparecido nas tuas “canções” – ironizou.

Kyra o olhou no fundo dos olhos. Tocou em sua enorme pata, que minutos antes destroçavam cabeças e troncos de dreds. Afirmou:

– Eu vim para conhecer a Terra Menor.

– Então, Peregrina, tape teu nariz – disse, pegando a pequena mão e tapando o rosto dela. – Será o pior cheiro de carniça que sentirá em todo planeta.

Os twin bears atacaram. Kyra, distante, virou-se para ver o sol e toda a extensão que seus olhos alcançavam pelo horizonte. Lembrou das vezes em que a mãe dizia que o Mundo era cruel, que as masmorras eram a segurança. Lembrou do pai, muitas vezes isolado em seu próprio mundo, debaixo de seu capuz, murmurando dores e problemas que existiam “lá fora”. Lembrou da Canção do fundo e do verso que a inclinou a conhecer a Terra Menor: Mal existirá no mundo se ninguém vier ao fundo. No fundo ela já estava. Então, num gesto simples, em meio ao fétido movimento promovido pelos bears, ao sol que queimava no horizonte, à luz de seus pensamentos, baixou lentamente o capuz para trás. Deixou a cabeleira reluzente brilhar pelo contato com os raios de sol. E, ao longe, Ombe parou, observou a jovem Peregrina e sentenciou:

– Seu velho Barber… Então é ela!

Os olhos ofuscados pela luz que vinha da direção de Kyra não o fizeram atentar ao perigo que se aproximava: uma nova série de dreds se aproximava a passos largos, do norte de onde estavam. A menina, mesmo apavorada, virou-se aos bears e apontou para o longe. Ombe e Abe ficaram descontentes por não ficarem devorando seus adversários, mas julgaram procedente o medo da peregrina. Deveriam levá-la sã e salva às ruínas de Barber. Mas ainda se questionavam: por quê? Para que lutavam tanto? Mais: por que pareciam não terminar os adversários? Ombe a identificou, mas não entendia sua importância.

– São muitos, pequena peregrina. Estou exausto – salientou Abe.

– Já fizemos muito, mas pensei que não iríamos encontrar tantas adversidades, menina. Precisaremos de ajuda.

Kyra silenciou num instante. Aos poucos, os passos retumbantes dos dreds se aproximavam, por meio de um som que misturava o medo e a força. Ela observa o Mundo, vê-o em meio a belezas e tempestades que só ele poderia provocar. As canções ainda ecoavam em sua mente, lembrando principalmente do pai, que empunhava uma estaca de pedra, dizendo como tentava se defender dos seres que habitavam o planeta. E aquele movimento esvoaçado de sua memória a fez lembrar que ela sabia como colaborar com os irmãos. Que se ela tivesse uma faca, uma adaga, qualquer objeto desses, saberia como atacar, como se defender. Ela via o pai fazendo aqueles movimentos. Kyra acreditava que teria como.

– Eu ajudarei.

– Ahn? – resmungou Abe.

– Eu posso ajudar!

– Não, peregrina. Esconda-se! Estão se aproximando!

Num gesto de pura inconsciência, Kyra pôs-se em corrida até a árvore mais próxima de onde estavam. Pulou contra seu tronco, apoiou-se, fez esforço para subir. Ficou no primeiro galho, mas julgou que poderia ser vista.

– Suba mais! – gritou Ombe.

Assim ela o fez. Dois, três, quatro galhos. O medo a fazia subir. Um medo mesclado com insegurança, mas com um obscuro desejo de descer e estraçalhar os dreds, que já estavam no campo de batalha. Abe destroçava os que se aproximavam, com socos tão potentes que arrastavam os que vinham por trás ao ataque. Repuxava membros e os arrancava do torso como se fossem insetos. Kyra observava, sentindo seu sangue aquecer. Ela nunca percebera o quão seus olhos ficavam arredios ao ver aquela cena. Ombe não fraquejava, mas via que sua respiração não era a de um menino – funda, anulando cada ação adversária, muito ofegante.

Com um grito de dor altíssimo, todos em volta perceberam que Abe fora atingido no braço. Uma afiada faca penetrou o membro do grande urso, que urgia de dor, mas não recuava. Ombe redobrou a atenção, tentando se aproximar do irmão.

– Não para, Abe! Não para – gritava.

Kyra sentia que lá de cima não faria nada. Via-se totalmente nula naquela situação. A dor de Abe entrava pelo seu ouvido e saía como lágrima pelos olhos. Uma lágrima lisa e lenta, porém cheia de uma perene raiva. Lembrava da Canção das dores, dos versos que remetiam às vogais em lenta pronúncia, como a dor ininterrupta de um ser convalescendo. Via a imagem do pai cravando a estaca no ar. E o tempo nublou ao mesmo tempo. O choro desceu de seu rosto e tocou o chão do campo de batalha. Um chão verde que, de repente, teve seu gramado levemente crescido. Ombe gritava no combate, como forma de aliviar seu cansaço. Abe andava para trás cada vez mais, resguardando-se de cada golpe que vinha dos adversários. Eles eram muitos. Ela tinha vontade de gritar, vontade de calar o anseio dos dreds, livrar os twin bears de todo o problema, de toda a dor. Então, com todo ar que lhe havia disponível, respirou fundo e bradou um grito jamais ouvido em toda Terra Menor.

Os dreds pararam. Sabiam que ali estava quem deveriam levar. Contudo, enquanto tentavam identificar de onde vinha tal grito, Abe e Ombe avançaram sobre a tropa. Despedaçavam os seres de forma mais bruta possível. Os demais que vinham por trás do campo de batalha aos poucos eram entrelaçados pelo gramado que crescia ao redor da árvore onde Kyra se encontrava. A peregrina, com mais receio de tudo que via, subiu ao topo da árvore e encontrou o horizonte rompendo-se: de um lado, as nuvens que se formaram sobre o campo de batalha começava a resvalar uma chuva caudalosa e rápida; de outro o brilho do sol ofuscava sua visão, mas abria um caminho livre de adversidades e de impedimentos para seu destino.

As plantas crescidas detonaram um a um os dreds. Abe e Ombe destruíram todos os seres que surgiram em suas frentes. A água que descia pesada aos poucos foi parando, rareando a cor cinza constante, que deu espaço ao branco e, em seguida, ao céu azul. Kyra desceu da árvore apavorada, mas entendendo que, se um grito seu colaborou com a vitória, ela poderia dar muito mais do que aquilo.

– É um mundo muito complicado esse, peregrina – disse Ombe – mas precisamos saber viver nele.

Ela surpreendeu-se com a frase, mas acatou. Sabia que era verdade. O que os bears não sabiam, no entanto, estava por ser dito:

– Eu vou ajuda-los a chegar até Barber.

Abe sorriu, mesmo com toda a dor.

– Você é só uma menina.

– Calma, Abe. A voz dela é poderosa – concluiu Ombe.

Kyra sorriu. Era a primeira vez que fazia isso em dias. Passou por tantas dificuldades até chegar àquele local que não se dera conta de que o sorriso desaparecera. E era tão boa a sensação de sentir o rosto enrubescer novamente. E sua alegria reverberava pelo campo, a ponto de tornar os rostos de Abe e Ombe mais leves, mesmo com todo o cansaço. Ela era a Última Peregrina, a última possibilidade de manter viva uma história que já parecia esquecida pela Terra Menor, mas que deveria permanecer. Ela era a chance de dar sequência a uma saga que, pelo jeito, iria além do encontro com o Mago Barber.

– Vamos – disse Ombe – Precisamos seguir.

Abe tinha muita dor, mas começou a caminhada. Kyra seguiu ao lado de Ombe. Pegou sua mão, agradecendo por tudo que até então ocorrera. Agora ela sabia que poderia fazer muito mais.

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